"Numa imensa, estranha e fria casa, em algum lugar da Polônia..."
"DOTOYEWSK, O indiferente!"
A mulher invade o salão com visível descontrole emocional. O som dos seus passos ressoa por toda parte explosivamente. Em sua procura para no meio da grande sala, e como uma soprano inicia um cântico chamativo. À princípio com relativo vigor. Depois , num crescendo infindo alcança verdadeiros berros.
- Dot... Dot... Dooooot... Dooooooooooooootoyewsk..? Onde está você...?- Abaixa a cabeça, parece chorar.Torcendo um pano de pratos, limpa o rosto com ele e olha para o chão com profunda tristeza. Seus ombros desmoronam e ela principia um delírio comovente.
- Onde foi você? Para onde foi dessa vez? Porque me alucina assim, com esses desaparecimentos imbecis?- A mulher parece estar em frangalhos. Escolhe um ponto da sala, olha com o olhar de uma santa e diz: - Eu preciso que alguém me diga onde foi que errei... Diga... Onde...? Em que momento cometi o pecado imperdoável..? Quando exatamente lhe falhei de forma irremediável...? Quando...? Dot! Dot tem que responder. Na verdade somente ele pode faze-lo. Afinal ele é a criatura, o sujeito da questão.-
Ela caminha nervosamente com passos pesados, parece massacrar batatas. Para, olha para o público e cantarola de forma inteligível uma canção infantil...
- Atirei o pau no gato-tô. Mas o gato-tô. Não morreu-reu-reu...
Já sei!!! Claro, já sei!!! Eu errei é claro, eu errei... Certamente quando dei carinho extremado, ilimitado. Paixão, dedicação total...
Heim...? Terá sido esse o meu erro..? RESPONDA DOT... É isso?- Ela grita para o nada, para ninguém. E continua...
-Sim, claro! Pois tudo isso lhe dei às pamparras, com extremado exagero. Sem que nada lhe faltasse... Sim... Claro... Pois o que pode faltar a um macho preguiçoso como você? O que pode faltar a um indolente, presunçoso, elitista, prepotente, com tamanha desconsideração como você? Tudo que me é possível fazer, faço prazerosamente. Divido tudo que possuo, tudo... - Já aos prantos, leva as mãos ao rosto e senta ao chão, no centro do imenso salão, sua aparência é de profunda decepção.
- Não estou jogando na cara não, que não sou disso. Não preciso discursar sobre meus feitos, até porque todo mundo sabe disso tudo. A vizinhança ouve a minha dor. É testemunha viva do meu sofrimento.
Muitas vezes dispus do que nem me pertencia. Tudo lhe dei. Minha vida, essa casa insuportável, as musses de maracujá com limão, as tortas de ovos d’ouro. O melhor lugar no sofá, ao lado do abajur. O leite e a carne. Os momentos à janela para ver os morcegos no pé de sapoti.E os meus potes adoráveis de jabuticaba em calda (a mulher chora). Os de goiabas das vermelhas. Os cremes de cajá-manga, a música de Mozart, A Música de Mozart, A MÚSICA DE MOZART...- Nesse instante o delírio da mulher é pleno, uma canção de Mozart se insinua ao longe- A Música de Mozart...- A mulher baila gargalhando pelo salão, prazerosamente, como se num baile de gala, feliz... Feliz...-A música de Mozart- repete sem parar...
A música para abruptamente e os ombros da mulher caem com seu semblante.-
Te dei minha alegria, minha paz, meu amor fraterno, te dei tudo. Em troca recebo sujeiras e indiferença. A noite cavo, sugo, extraio o melhor de mim mesma para você. Nem sei de onde trago tamanha competência, eu que saí da casa de papai tão jovem e imatura. Trato do seu lado da cama com se fosse um ninho... Cubro você e te observo. Seu descaso e o descanso despojado e lânguido.
Além disso engulo e suporto calada suas ridículas fugas noturnas cada vez mais constantes. Realmente te dou tudo o que tenho. Gasto com você o que posso e o que não posso. Minhas economias, parcas é verdade, mas tudo que possuo.
A pensão horrorosa que Anselmo deixou... Até isso, a pensão que aquele miserável me deixou, que mixaria... Maldito Anselmo!
Ela continua a andar de um lado para o outro, vez por outra passa o pano de prato no rosto para secar o suor.
Tudo para você... Tudo para você... E o que tenho em troca? Nada! Nada! Nada!
Isso... É isso mesmo... Deixe que repondo...Tudo isso é o que tenho, um grande nada!
Exceto talvez, essa comovente indiferença, essa vil distância... Eu seria capaz de qualquer coisa para alterar essa realidade. Eu... Eu que mantenho as cortinas fechadas para seu deleite, penumbra para seu descanso. Afias suas garras no que de melhor eu tenho, em meu coração! Insano, desrespeitoso, boçal, estúpido. Não suporto mais você. Não suporto mais essa situação...
A mulher caminha para um grande móvel do imenso salão, abre uma gaveta e pega um enorme facão de cozinha, sujo e enferrujado e começa a afia-lo por sobre uma pedra de amolar, provocando um ruído desagradável... –
Se não aparecer em um minuto (diz com veemência assustadora) afiarei essa faca e como último recurso te CAPAREI!!!
Está ouvindo DOT..? Dotoyewsk... Apareça, seu gato miserável!!!!!!!!!!!!
Ao fundo ouve-se um longo e alucinado miado...
MIAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAU!
FIM
Nenhum comentário:
Postar um comentário