sábado, 27 de outubro de 2007

INTERIORES MÓRBIDOS ! * de Marantbarfer

Interiores Mórbidos!



Estava eu daqui da minha janela no fim da rua, sob meu enorme flamboyant, vendo o mundo de lado com meu estranho olho esquerdo, quando percebi uma curiosa realidade cotidiana. Constatei que tenho visto o mundo assim. Sempre e sempre assim, de janelas, através dos tempos. Eu crasso, pingue-pongueando entre lucidez e razão, em observância claustral. Registrando as emoções dos movimentos, disciplinas e subordinação da languidez em cada cisco que compõe esse quadro metaforado que a natureza desenhou aqui.
Desde os primórdios sou assim, vejo o mundo das janelas dos meus olhos principalmente. Por não saber ser diferente, gosto disso como é.
O meu interior é como todo interior, escuro e silencioso. Lá fora, em ostentação, toda a luminosidade do mundo, a vida, em jactância soberba. É o beneplácito da esperança, a concordância da plenitude inexplicável.
Fotografo tudo e o efeito é sublime. Luz concentrada onde interessa, onde quero vê-la, antes, enquanto e depois das sombras, conforme dita o cotidiano.
Aqui, ali, em você, na vida e no mundo. Cores, muitas cores, todas as cores, além e acima do que exibe o proscênio do arco-íris.

Vejo a claridade sobre a garota que passa além do meu berlinense muro e penso como é doce a beleza dessa menina, que como milhões de outras quaisquer, que passam nesse mesmo momento, de algum lugar para um outro lugar qualquer e simplesmente não me vêem.
Ela ainda não sabe, mas simboliza quem eu quero ver passar e não sei por onde, não conheço o seu caminho. Quem eu quero ver indo e voltando, mas não sei do seu destino. Simboliza minha paixão maior e também meu sonho mais ridículo. Esqueçamos dela por tanto, por algum tempo, o tempo que eu suportar.

Certa vez alguns homens notáveis, cinco se não me engano, reuniram-se em torno de um pensamento, uma única finalidade. Eram todos profissionais brilhantes e muito reconhecidos, todos com capacidades notáveis para a criação independente de suas especialidades ou até por isso mesmo. Havia escritor, músico, toureiro, artista plástico, todos invejávelmente bem sucedidos em suas opções de vida. Entre eles estavam Pablo Picasso e Pedro de Alarcon, quem acabou por registrar o fato. A idéia é que cada um deles escrevesse um texto sobre o mesmo tema e A Mulher Loura, foi o tema escolhido. Que poderia ser belíssima ou não, pequena, alta, gorda, magra, não importava qual fosse a visão, A Mulher Loura seria a figura central para todos.
Uma vez acordados, embrenharam-se nessa idéia e cada qual escreveu o que via e sentia sobre a tal mulher. Fica clara a impossibilidade de se retratar a mesma mulher, de se aproximar uma das outras, pois cada um deles desenvolveu sua própria mulher loura e despejaram seus sentimentos sobre a tal, que visívelmente não poderiam ser sequer vizinhas, parentes nem pensar, eram galáxias distantes, universos desconhecidos. De semelhante só a cor dos cabelos.
Curiosamente, em minha opinião, a melhor visão e a narrativa mais deliciosa não é a do escritor, como a princípio pode-se imaginar. A volúpia, a paixão e o denodo apresentados, que independeu da exigência técnica, cresceram notadamente em quem as tinha mais. Consultem “O Chapéu de Três Bicos”, de Pedro de Alarcon e conhecerão a íntegra a respeito.
Digo tudo isso porque essa leitura me fez ver e entender o quanto e como somos únicos no que somos. Minha maneira de ver a vida e o mundo por minha janela aqui no fim da rua é muito diferente da maneira que o meu vizinho da janela ao lado vê as mesmas coisas. Embora pareça que vejamos analogamente o que se apresenta no todo daquele quadro, como sendo idêntico, em verdade os ângulos podem até se encruzilhar. Além do mais, o velho decrépito que habita aqui ao lado e a quem eu sequer cumprimento, é meio que cego, maluco e estúpido. Não necessariamente nessa ordem.


E é isso. Venho tentando há tempos enxergar e entender esse "eu" que me habita. Que é tão diferente do "eu" que habita você e de todos os outros "eus" da terra.
Há tempos que cheguei no espelho e me choquei com o que vi. Não conheci aquele cara que estava lá no espelho me olhando. Não fazia a menor idéia de quem poderia ser. Decerto não sou "eu" aquela fisionomia absolutamente estranha que vejo.
É essa casca tosca que habita esse ser primoroso e único que sou, com o qual penso e dou credito?
Absurdo de verdade. Eu mesmo jamais aceitaria, sequer conviveria ou me apaixonaria por aquela coisa que me olha lá do espelho. Imaginem então vocês, aquela menina adorável que passa tão inocentemente por aqui. Faz muito bem em me ignorar, em não me ver e prosseguir levitando em seus passos suaves em busca de seu destino.
Mas eu também não sou responsável por isso. Eu desconheço esse sujeito, não dou o meu aval e vou ignorá-lo até o fim dos tempos, que saco, cruzes!
Mas posso garantir que o "eu" interior, o que está aqui dentro da cabeçorra desarquitetada que conduzo, em forma de pensamento, esse sim. Eu conheço muito bem e respeito.

Tenho nutrido também um grande medo, através dos tempos, de não ter ou ser um espírito, uma alma ou algo desse tipo. Dessas que se eternizam, como apregoam por aí. Medo de que nada disso exista e tudo o que sou, vejo e penso se perca para todo o sempre. Que não se reproduza nem se propague por outros mundos ou galáxias. Que morra com esse corpo outrora adorável e agora detestável. Meus registros, jamais perderei meus registros. Que não se perca toda a capacidade de denúncia, repugnância, criação e esbanjamento de amor, ódio, melancolia e bravatas de que me julgo capaz.

Você, pobre você, corre o risco de jamais tomar conhecimento do que somente "eu" vejo daqui, da janela dos meus olhos e de minha janela no fim da rua.
Pare para pensar nisso. Não seria terrível você e o mundo desconhecerem para todo o sempre aquilo que só minhas janelas primordiais possibilitaram ser registrado em meu "eu"? O que guardo em minha mente? A morte não pode levar isso embora, com seu adeus mudo e inefável.

Esse besouro gigantesco. Essa borboleta extraordinária que me sabota com os azuis diferenciados sobre um negro reluzente que abraça o indefectível verde musgo que tanto amo. E aquela menina que quase dobra a esquina agora.
O que me impressiona é que ela tem a mesma altura mediana. Aquele cabelo liso e denso, castanho-negro. Aquela boca carnuda com o mesmo batom acentuado. Os olhos oblíquos. As mãos tenras e aparentemente úmidas. Os pés pálidos, magros e diminutos.
As saliências em suas curvas fundamentais são tão semelhantes às dela, o encantamento no seu ar jovial e até a risada (que certa vez por acidente ouvi) se assemelham muitíssimo. No entanto, não é ela. Está longe de ser quem não sei onde anda, por que esquinas dobra.
Isso é só um sonho idiota, improvável, impossível.
É melhor que esqueçamos dela por um bom tempo. O tempo que eu conseguir. É só um sonho!

Vivo aqui a pescar pérolas com as pontas dos dedos, jóias de ilusões que passam em gotículas inconcebivelmente azuladas e suspensas e que com extraordinária leveza se mantém no ar qual o éter inexplicável. Separadas entre si por milagrosos milímetros, se denunciam pela magnífica luz que trazem com a manhã, do sol, também com seus reflexos desconexos e surpreendentes. Permitem que por instantes, possamos com nossas janelas naturais contemplar o quão maravilhosa é a natureza. Gosto também de me voltar para o interior da casa e através dos mesmos raios solares, visualizar o leve passeio pueril que existe na luminosidade a atravessar as frestas da gelosia intervalada, generosa e desleixada de minha velha janela.
Vivo aqui a observar duendes que caminham pelas mágicas teias de aranha, que se instalaram providencialmente entre os galhos e folhas da árvore mais próxima e a fasquia em madeira da janela. Passam e fazem que não me vêem. Com enorme senso de enganação e sensível falta de educação passam por mim sem um mínimo cumprimento, um breve aceno, um piscar de olhos que seja. Acho que fazem de conta que não existo. Ou, fazem de conta que são blefes que a imaginação dos tolos criam. Querem se passar por mentirinhas e me fazem passar por um imbecil sonhador perante vocês. Mas eu, é claro, não me faço de rogado. Por vezes, é verdade, também os ignoro, mas em outras digo cordialmente: "Bom dia senhor duende. Bom dia duendinha linda! Você aí com esse lencinho vermelho na cabeça, sobre esses cabelos fantasticamente ruivos!" Bom dia!
Mas não adianta. Passam em seu mundinho particular, como se mais nada existisse. Como se aquela janela fosse deles. Absurdo!

Acho que a menina está voltando. Não vem em minha direção. Na verdade parou para colher flores e está ainda longe de mim. Mas ainda assim reparo em seus joelhos amorenados. São volumosos e estão sustentados por uma bela perna torneada e aquelas panturrilhas inexplicavelmente fortes. Daqui, posso perceber os pêlos que esvoaçam com leveza, ante o vento sortudo, que se delicia. Quanta suavidade nos movimentos...


Com cuidado posso me detalhar na observação calma, como um especialista formado em Harvard, que se surpreende na delícia do que vê, delícia farta. Quisera tocá-la com meus pensamentos
Mesmo assim, não é a minha menina. Não, não é ela, aquela moça é outra.

A que amo? Nunca a vi pela rua a vagar. Não conheço seu rosto a menos de trinta metros de distância. Nunca a vi ao sol do dia, toquei sua pele ou disse-lhe qualquer palavra. Mesmo assim a amo. Ridículo, né?
Julgo que meu testemunho sobre a frivolidade vista daqui do fim da rua é fundamental para o entendimento da vida, para a compreensão da raça humana, sobre o sentido de tudo. É claro que, o que relato aqui é o que vi e, portanto, tudo é novidade para outros.
Quem é você que não sabe o que vi? Quem é você, palpiteiro infeliz? Lamento apenas não morar na Rua Codajás, curto tanto as peles morenas. Seriam bem mais significativos os meus pronunciamentos de vida e constatações de beleza infinita.

Acho que você não tem o direito de desacreditar, de me ofender ou julgar sem provas aceitáveis. Vejo o seu sorriso indisfarçável e sua incredulidade sobre minha narrativa. MAS NÃO PRECISO DE SUA AVERBAÇÃO! NÃO QUERO SABER DOS SEUS CONHECIMENTOS UNIVERSITÁRIOS OU SUA VISÃO ILIBADA DE PESSOA RESPEITÁVEL, COM CREDIBILIDADE MERCADOLÓGICA E OUTRAS COISAS!

Droga, desculpe. Não queria altear a voz ou ser agressivo com você. Em geral sou uma pessoa calma, de bons modos e que respeita a tudo e a todos. Estou um pouco ou muito enlouquecido com tudo que me cerca. O descaso dela, que até hoje nem me conhece e sequer faz algo contra isso, sabias? Acredite se quiser, ela nem sabe que eu a amo. E eu a amo tanto...
Outro dia sonhei que a vi. Corri metade da noite até alcançá-la. Quando consegui e contemplei seu sorriso meigo, percebi que eu estava mudo, lívido e com a visão completamente turva.
Lembro que peguei suas mãos tão leves e tão quentes. Foi como viagem à vela em mar ardente. Cruzei mil continentes. Ali, em Júpiter, toquei seus diamantes como que sem querer, fiquei com vergonha. Mas, como amante fiel à sina ofereceu-me sua carne volumosa e perfumada.



Os brilhantes ocultos em sua sedução me levaram às ruas de Areia Branca, de Amaralina. A fazer passeios de sandálias, sem camisa e com calça frouxa em linho branco, contemplando o casario, com as mãos entrelaçadas.
Oh! Pequenina, meu coração de um salto só invadiu teu palco e amedrontado perdeu a direção da emoção e pendeu para o lado escuro do incerto.

Te buli. Que vergonha!
Percebeste?
Fiquei tão fraco, perdi o texto.
Perdi o tempo e corri pelos trilhos da loucura, com as mãos trêmulas buscando o verso.
Ah! Labirinto resplandecente. Vaso de sabedoria que tudo sente.
Olhar pragmático, entorpecente. Boca indomável e inocente...!
Eu quis me ver belo e belo jamais fui.
Eu quis me ver novo e novo já não sou mais.

Quando chove e as gotículas claras e perfumadas se chocam contra a mágica vidraça esverdeada da moldura da janela, lembro da juventude e de como eu era, da majestade e do semblante. Em dias assim, para melhor reviver as lembranças, invariavelmente coloco o CD Abbey Road, dos Beatles, me ajuda a transportar minha alma pra outros tempos, já que antes, eu era vigoroso e com a face pura, mergulhada em inocência e beleza. Gentil e propenso, envolvia a todas as meninas da rua e nem sabia que o fazia.
Que saudade! Que vontade de chorar!

Alguém me tocou. Agora tudo se assentou, tudo parou.
Tenho que ir com eles, pensam que tenho setenta e seis anos de idade. Está na hora da ceia e somos muito rígidos com horários e com ceias por aqui.
Dobro-me sobre os calcanhares e ainda vejo a moça que vem subindo a rua. Não há tempo para ela, afinal nem me conhece. Não me vê. Jamais observou que minha janela existe.
Em verdade, só lembra fisionomicamente minha doce e inesquecível amada, que também jamais me viu.
Também pudera... Com essa casca que eu tenho, pra quê? Em verdade, nem eu mesmo me amaria.
Caminhar a passos lentos me irrita. Acho que vão trocar meu pijama só porque esse é o que mais gosto. Falei do meu pijama verde com listinhas brancas? Ah! Deixa pra lá.
Tchau! Até amanhã mais ou menos nesse horário, certamente conversaremos mais!

FIM !

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